Publico muitas vezes artigos do Daniel Oliveira, porque ao lê-los revejo-me no que escreve e concordo com muito do que diz. Este que se segue não é excepção e como sempre chama a atenção do leitor que se quer que alguma coisa mude temos que fazer por isso. Eu acredito num estado social assim, e acredito que é possível.
por Daniel Oliveira
A "reforma do Estado", assim
como as "reformas estruturais", são excelentes expressões para
políticos, jornalistas e comentadores. Têm a vantagem de, parecendo querer
dizer qualquer coisa, toda a gente concordar, à partida, com elas.Quem não quer
a reforma do Estado? Quem se opõe a reformas estruturais?
Eu, por exemplo, defendo uma reforma do Estado que aprofunde o
Estado Social, generalize ainda mais a escola pública e o Serviço Nacional
de Saúde. Porque é o mais justo e, se só esta linguagem hoje pode ser
compreendida, porque só uma população qualificada e saudável pode produzir
de forma competitiva, fazendo crescer a economia de forma a continuar a pagar a
sua qualificação e a sua saúde, numa espiral de desenvolvimento. Os factos
mostram que a economia das sociedades menos desiguais cresce de forma mais
sustentada (…)
Quero reformas estruturais e políticas
que garantam a separação entre interesses privados e o interesse público,
acabando com a promiscuidade entre os grupos financeiros e os dinheiros do
Estado, que suga os parcos recursos dos contribuintes. Quero que o Estado
retome o controlo sobre a distribuição de energia, um dos principais factores
de estrangulamento da nossa produção industrial. Que mantenha o controlo
sobre a distribuição de água e os transportes públicos. Que recuse a
privatização de serviços públicos e de monopólios naturais, que resultam em
rendas insustentáveis pagas pelos consumidores. Que não seja um mero fiador da
banca e exija, em troca, que esta cumpra as suas funções. Que dê ao
seu banco público uma função central no financiamento da economia.
Que dê aos reguladoresmuitíssimo mais poder, retirando-o das mãos dos
regulados. Que desenvolva uma política fiscal mais progressiva,
conseguindo assim mais receitas sem esmagar a classe média. Que recupere o
controlo das políticas monetárias.
Não me parece que ideólogos deste
governo subscrevam a reforma do Estado e maioria das reformas estruturais que
defendo. Seria, por isso, avisado parar de usar estas duas expressões como
se fossem, por si só, um programa político.
Qualquer reforma do Estado passa, antes de tudo, por
este debate político: que funções queremos para o Estado? Um Serviço
Nacional de Saúde universal e gratuito para todos ou apenas para os pobres,
deixando a vida dos restantes entregues ao mercado? Uma Escola Pública interclassista
ou apenas para quem não consiga pagar escolas privadas, desistindo do combate
pela igualdade de oportunidades? Uma segurança social digna de um Estado
Providência ou a velhice entregue à volatilidade dos Fundos de Pensões? Um
Estado Social ou um Estado que garante apenas as funções de soberania? Estado
na economia ou o mercado em rédea solta? Acreditamos que cabe ao Estado
redistribuir riqueza e serviços ou que o mérito e a concorrência chegarão para
garantir a prosperidade de todos?
Este debate tem de ser feito por nós, como comunidade. (…) É uma escolha política. E, em democracia, a
política é feita pelos cidadãos. (…)
(…) Porque a pergunta a responder é sempre esta :reformar
o Estado para ele fazer o quê? Sabendo que esta decisão determinará o tipo
de desenvolvimento teremos. (…)
Chegados a alguma conclusão em relação
ao modelo que queremos seguir, olhamos para o Estado que temos e decidimos que
medidas devemos tomar para que ele
esteja adequado ao que o País, como um todo, pretende dele. Depois de clarificarmos como devemos
organizar o Estado, olhamos para os recursos do Estado e para os recursos
da economia e percebemos como pode ele ser pago. (…)
O que o governo nos vem dizer é isto: para
começar, vamos cortar de 4 a 6 mil milhões. E vamos cortá-los essencialmente
nas funções sociais do Estado (que, para quem não saiba, não se cumprem
sem funcionários públicos, professores, médicos, enfermeiros, técnicos,
fiscais). E depois convoca os parceiros sociais e os partidos para fazerem
propostas alternativas dentro da sua própria lógica.
Não há aqui nenhuma reforma do Estado e disto não pode
nascer qualquer negociação séria. (…)
Sem que nenhum debate político seja
feito pela comunidade sobre uma escolha que marcará a vida dos nossos filhos,
netos e bisnetos.
Só ficando assente que não estamos
perante uma reforma do Estado, nem perante reformas estruturais, mas apenas
perante mais um pacote de austeridade que tem nas funções sociais do
Estado e em quem delas depende as suas principais vítimas, podemos ter uma
conversa séria sobre as medidas de Passos Coelho.
Restam, assim, dois argumentos possíveis
para defender esta loucura: ela é a única forma de endireitarmos as contas
públicas e pormos fim à espiral de endividamento; ou
apenas precisamos disto para nos vermos livres da troika e
regressarmos aos mercados.
(…)
Resumindo: se eu a pago pela escola e
pelo SNS perco rendimento. Se o Estado reduz as reformas tira rendimento aos
reformados. Perder rendimento por via da contração do Estado Social ou do
aumento de impostos tem o mesmo efeito na carteira das pessoas e, por isso, no
conjunto da economia. Se o Estado, ainda por cima, faz as duas coisas em
simultâneo, asfixia os cidadãos.
(…)
Sim, o debate sobre o que queremos do Estado e, por
essa via, em que sociedade queremos viver, é mesmo o mais importante. E, ao contrário do que pensa o Presidente, este
debate é, sempre foi, sobre o Portugal pós-troika. Só que ele está a
fazer-se agora, com as medidas que estão a ser tomadas. Quem tenta mostrar que
este caminho é um suicídio está mais preocupado com o futuro do que com o
presente. Quem corta a eito e esmaga o País com a austeridade para cumprir
metas e ver avaliações da troika resolvidas é que só pensa no
presente.
Se assentarmos que queremos mesmo defender o Estado
Social, mudando o que tem de ser mudado (diversificando as fontes de
financiamento da segurança social, combatendo a crise demográfica, fazendo da
criação de emprego o principal objetivo da nossa política económica, expurgando
do sistema, com tempo e de forma planeada, desperdícios e
incongruências), teremos de concluir que a nossa recuperação económica não
se fará às custas da sua destruição. (…)
Continuar a impor a retórica da inevitabilidade é
recusar o debate político. (…)
Para que não fique aqui a ideia de que
sou ingénuo: há quem, no governo, saiba muito bem o que quer. E que esteja
mesmo a preparar uma reforma do Estado. Que passa, no essencial, pela
destruição das suas funções sociais. Tem o direito de acreditar que esse é
o melhor caminho para a prosperidade do País. Não tem é o direito de se
esconder em falsas inevitabilidades para o impor. Diga-as de forma explicita e
tente conquistar a maioria social que evidentemente lhe falta. A isso, e não à chantagem, se chama
democracia.»
Sem comentários:
Enviar um comentário